Revista Spin: matéria sobre Kurt Cobain escrita dias após a sua morte em 1994
Confira a matéria de capa da revista Spin de junho de 1994 escrita pelo fundador da revista dias após o falecimento do frontman do NIRVANA, Kurt Cobain.
Mas antes, uma breve introdução publicada agora em abril de 2024, marcando os 30 anos de sua morte (05 de abril):
Há 30 anos, o líder de sua geração suicidou-se. O fundador da revista Spin, Bob Guccione Jr, era próximo de Kurt Cobain e escreveu esse editorial dias após a morte de Kurt.
Quando soube que o corpo de Kurt Cobain havia sido encontrado no dia 08 de abril de 1994 e que ele havia morrido aparentemente por suicídio, eu estava em Detroit a negócios. As redes de televisão e outros meios de comunicação tentavam me localizar para me entrevistar sobre sua morte. Eu conhecia bem Kurt e ele me considerava uma espécie de irmão mais velho, a quem às vezes me telefonava para pedir conselhos - muitas vezes conjugal. Ele sabia que eu nunca quis nada dele, o que era raro em seu mundo e isso criou uma amizade agradável, genuína e sem pressão.
Eu não queria falar com a mídia sobre isso. Eu não queria ser um daqueles abutres ansiosos da TV pendurado em um galho só olhando e descendo para bicar um cadáver imóvel, mas então, decidi que deveria fazer uma entrevista, apenas para deixar registrado uma avaliação sóbria sobre um homem especial, maravilhoso, frágil e torturado, que tive o grande prazer de conhecer e o mundo teve o grande prazer de ouvir a música dele. Então, o canal de TV americano, a CBS, enviou um cinegrafista ao meu quarto de hotel onde estava hospedado e eu sentei em frente a uma câmera imóvel que estava instalada sob um tripé, enquanto um entrevistador em New York me fazia perguntas por telefone, onde eu ficava encarando a câmera para responder.
Enfatizei que Kurt era um homem imperfeito, mas um gênio, além de ser uma boa pessoa que não deveria ser mitificado nem condenado, mas que naquela época era lembrado com carinho e tratado com delicadeza, sendo que a tristeza do momento era reconhecida.
Voltei de Detroit para New York naquele dia e em meu quarto de hotel escrevi o seguinte editorial para a nossa próxima edição da revista, que estávamos montando para ser uma homenagem a Kurt.
(Esse editorial abaixo foi publicado originalmente na edição de junho de 1994 da revista Spin)
Em uma viagem de negócios a Seattle há alguns anos, combinei um encontro com Kurt Cobain e Courtney Love para jantar. Eu os conheci em Los Angeles alguns meses antes, na casa de Danny Goldberg e Rosemary Carroll (empresários do NIRVANA), e agora o escritório deles e o meu fizeram os preparativos para que nos encontrássemos novamente. Quando cheguei em Seattle, havia mensagens esperando por mim.
Kurt mudou de hotel e pseudônimo. Liguei para o novo local e a recepcionista disse que não havia ninguém com esse nome cadastrado que eu tinha citado. Eu disse: "Você tem certeza?" Claro que eles tinham certeza. Tentei o codinome original de Kurt. Mesma coisa. Liguei para o escritório do NIRVANA e eles me disseram que Kurt estava com certeza naquele hotel. Telefonei de volta e me frustrei novamente, não entendia, pois eu conhecia Kurt Cobain e tinha uma série de pseudônimos que ele havia me dado para conseguir encontra-lo nos hotéis, mas a recepcionista do hotel me interrompeu e disse: "Temos o Sr. Kurt Cobain hospedado conosco" e ela passou a minha ligação para o quarto dele.
A maior estrela do rock do mundo, como era então – o Atlas do grunge com o mundo jovem em seus ombros magros – estava registrado em seu próprio nome real.
Acabamos indo parar em uma pizzaria com alguns amigos de bandas locais, tendo primeiro perdido Kurt e Courtney que pararam em uma loja para comprar chapéus para todos nós. Não apenas chapéus quaisquer, mas aqueles extraordinariamente estúpidos que Courtney queria que todos usassem, onde apenas eu e minha namorada, Karen, recusamos educadamente. Kurt usava um boné xadrez enorme de caçador de patos e sua postura era toda curvada para frente devido aos seu problema de toda uma vida na coluna.
Ele parecia infeliz... Ele não estava, mas parecia.
Mais tarde, atravessamos a cidade em carruagens puxadas por cavalos até um bar/restaurante que fica no topo de um hotel. Mesmo estando muito frio, Courtney tinha visto essas carruagens passando e correu pela rua para pará-los e contratá-los. Mais músicos já haviam se juntado a nós, incluindo Krist Novoselic e Dave Grohl (baixista e baterista do NIRVANA). O bar no topo do hotel dava para um terraço e alguns de nós saímos para tomar ar fresco. A noite estava cristalina e o ar estava frio e rejuvenescedor. Todos conversavam animadamente e ninguém se sentia mal.
A certa altura, de repente percebi que todos - exceto Karen, Kurt e eu - tinham voltado para dentro. Kurt estava apoiado com os braços no parapeito do terraço e absolutamente imóvel olhando para Seattle. Fui e fiquei ao lado dele e comecei a conversar com ele. Kurt parecia estar olhando para um ponto muito além do horizonte. Quando comecei a conversar, ele olhou diretamente pra mim. Kurt tinha os olhos mais notáveis que já conheci e com a mesma intensidade que via nas fotografias de Picasso. Era uma luz impressionante e assustadora em seus olhos que brilhava de algum lugar muito profundo e, agora sabemos, muito perturbador.
Quando entramos de volta ao barulho e à fumaça do bar, Karen me perguntou: “O que ele estava olhando tão atentamente?” Eu disse a ela que achava que Kurt Cobain estava procurando por sua vida.
Tragicamente, ele nunca a encontrou. Possivelmente estava bem debaixo de seu nariz, mas ele não conseguia vê-la em meio à confusão que não conseguia entender. Eu o conheci bem o suficiente para dizer que ele era sincero e incrivelmente honesto ao extremo. Ele falava sem pensar nas suas consequências comerciais e a muito alardeada “reação” do NIRVANA que precedeu e envolveu o disco "In Utero" (4º e último trabalho de estúdio, 1993) foi a criação daquele personagem pela gravadora que Cobain decepcionou por não desempenhar o papel de estrela do rock.
Porra, quando você se torna tão bem sucedido e gigantesco quanto ele se tornou, as pessoas não queriam que ele fosse uma pessoa normal como um de nós. Era ofensivo para alguma estética de consumo e Kurt não estava fornecendo a fantasia necessária. Ele odiou genuinamente o sucesso porque percebeu - com horror ao alcançá-lo - que envolvia ser uma imagem que outras pessoas queriam e não mais o que ele queria.
Essa era a parte da descrição do trabalho para a qual ninguém poderia preparar um cara como Kurt. Ele não tinha estrutura emocional para suportar o peso incrível das expectativas de milhões de pessoas. Todo artista quer ser tão importante quanto possível, mas a maioria leva tanto tempo para chegar a essa posição que vai desenvolvendo seu senso de identidade e perspectiva durante o caminho percorrido. Francamente, estrelas do rock como Kurt são catapultadas para posições de importância exagerada de forma tão rápida que não conseguem se comportar perfeitamente, assim como um astronauta que não consegue sair calmamente de sua cadeira e andar por aí enquanto seu foguete espacial está sendo impulsionado para o céu.
Seu tormento era real e sua genialidade também - outra coisa que ele não entendia, acredito eu. Faltava-lhe o ego de um grande gênio e uma autoconfiança, não necessária para fazer você criar, mas essencial para você acreditar que deveria sustentá-los nas dificuldades por ser diferente. É como um selante, mas Kurt não tinha isso.
Ao homenageá-lo, quaisquer que fossem os motivos não deveríamos glorificar ou de qualquer forma desculpar o fato dele ter tirado a própria vida, ou o fato de ser um viciado em heroína que tentou, sem sucesso, se livrar dela. Mas seria igualmente errado torná-lo vilão ou considerá-lo um idiota irresponsável. Ele era um homem trágico e deveríamos sentir por ele e tentar entender o que nunca poderemos saber. A sua morte é uma tragédia e devemos rezar para que ele encontre agora a paz que lhe escapou em vida.
Ele foi o poeta dessa geração e isso não é exagero. Será fácil nos próximos meses, especialmente para as pessoas mais velhas, subestimar a importância e a contribuição de Kurt, mas isto será errado. Tal como Rimbaud que morreu muito jovem, ele viveu de forma pouco lisonjeira e deixou muito pouco em comparação com o que esperávamos devido ao seu tempo na Terra, mas foi o suficiente para que fosse um dos pilares do panteão artístico.
A maneira horrível de sua morte e o grau de raiva que sentimos porque Kurt destruiu algo que tanto amávamos, criou um coágulo de sangue cultural. Os heróis das gerações anteriores tiveram mortes míticas. James Dean, Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin voaram muito perto da chama. John Lennon foi martirizado, mas Kurt Cobain estourou os miolos. Ele desligou sua dor e não há nada remotamente romântico ou mítico nisso.
Ele amava sua filha, amava Courtney e ele deve ter se odiado e visto o quão perdido estava apesar disso - provavelmente sempre esteve. Assistindo a uma das enésimas exibições do acústico do NIRVANA na MTV na noite seguinte à descoberta de seu corpo, senti que estava observando um fantasma. Ele parecia tão vivo e tão carismático, ao mesmo tempo relaxado girando de um lado para o outro em sua cadeira e dolorosamente desconfortável e inseguro na frente do público, vestindo o tipo de casaco cardigã que as pessoas de meia-idade usam quando sentadas em frente a uma lareira.
Só isso, inseguro...
Um gênio musical igual a qualquer um na história do rock'n'roll, mas muito mais delicado e finalmente mais azarado do que a maioria de seus pares, cantando como quando pessoas más morrem: “Elas não vão para o céu onde os anjos voam / Elas vão para o lago de fogo e fritura”, alheio à ironia de que, ao fazer o cover da música “Lake of Fire” do MEAT PUPPETS no show acústico, ele estava cantando uma versão distorcida de seu próprio elogio ou que esse formato castrado de grunge acústico foi a primeira oportunidade para que muitas pessoas entendessem as palavras que ele cantava, e assim, vissem que enorme e especial luz tinha se apagado.
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